Em dezembro

Antonio Miranda Fernandes

Geralmente entro em dezembro com calma e silencio...
Não como andasse entre ovos num universo cacarejado,
Mas como entrasse num novo dicionário de presente.

Não desses que desdobramos com facilidade na internet,
Mas sim daqueles que nos faz pisar com cuidado
No reino aonde moram palavras que irão escrever
Poemas que se paralisaram no amadurecimento da espera
Por algum motivo de seu.

Não mexo neles impulsionado por algum sentimento meu
Que nada tem de importante diante de desculpa alguma.
Não os amputo
Não os remendo
Não os desprezo
Deixo-os como se fizeram e procuro compreender as diferenças.
Sei que o caminho é o mesmo apenas os passos mudaram.
Entendo...

Eles são como escombros lançados à espuma do rio,
Que não reflui e pode alargar as margens.
E alarga... mais ou menos dia...
Adiante se faz em remanso, mas continua em frente.
Os incidentes que se fazem em minha vida não têm esse poder.
Na escala real das grandiosidades sou menos que um ponto.
Cresço nas metáforas que escrevo,
Mas não me atrevo a tentar desvendar os mistérios além.

Evito revelar os meus sentimentos ao construir versos,
Pois ao universo nada disso interessa com imediatismo,
Somente à irreversível evolução da espécie.
É quase impossível, mas tento guarda-los em mim,
Até que num momento qualquer,
Dentro dos milhões de anos que estão por vir,
Por vontade e força próprias,
Eles eclodam e se lancem no desconhecido.
Então...
Que voem se souberem ou se destrocem de mil maneiras
Permanecendo na essência,
Pois as diferenças dos sentires estão nos leitores.

Olho da janela outras janelas que piscam luzes coloridas
E divago por açucaradas lembranças do passado...

Lembranças do passado...

Quanta estranheza nessas diabéticas palavras...
Recordações só podem ser do passado...
Lembranças...

Vejo as luzes dos automóveis e o mundo se enche de luzes...
De diversas cores...
Algumas se afastam tortuosas como fossem palavras a se perderem,
E elas realmente se apagam na distância...
E não existe poesia nisso.
São como um sonho desses confusos que temos vez em quando.

Às vezes entro em dezembro com mais vontade de mentir,
Acho que pelo fato de ser o mês em que nasci
Sinto-o como o mais importante do zodíaco?
Se eu o fizesse nada teria de condenável,
Ora pois, como disse  Fernando Pessoa, o poeta é um fingidor,
E eu vivo entre os homens num mundo sabidamente corrompido.

Entre um janeiro e um dezembro de um ano qualquer,
Fui corrompido em algum lugar...
Em algum acontecimento...
Gostaria que não fosse assim,
Mas é.

Receita médica não é poesia,
É pé de cabra para invadir
Ou linimento para consertar algum estrago.
Há nos becos daqueles garranchos
Letras que gostaríamos de não saber ler.
A grafia que parece pertencer a outro mundo em deterioração
Que não o nosso...
Seria melhor não fosse.

O espelho se embaça e eu procuro conviver com a imagem em dissipação,
Entre o que é real e o que é imaginação.
Prefiro que eles se fundam e se confundam,
Assim como procuro conviver com os meus poemas mutantes no tempo.
Sem dramatizar-me,
Sem dilemas na procura de mais que duas alternativas,
Com o cuidado de quem zela por copos de cristal...
Mesmo que me tirem a calma que é tão confortável.

Por fim entro em dezembro como fosse eu um poema.
Fosse uma surpresa que eu não esperasse.
A cada ano ele exaustivamente se repete...
Sabe que adiante está janeiro...e fevereiro...e março...e...
Ele se impõe, por ser próprio da vida, do jeito que bem entende...
Busca o desfecho que mais lhe apraz.
Quando isso deixar de acontecer ele ficará para trás...
Serão letras lineares sem pulsação de volta ao dicionário...
Uma lembrança...
Apenas mais um poema que, bem ou mal escrito, se cumpriu.

---o---
Fernando Pessoa

"O poeta é um fingidor. /  Finge tão completamente / que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente"