Conflito urbano
Antônio Miranda Fernandes

O céu esvaecido em garoa fina
Corpo curvado ao frio caminha
Embaçando a verdade no olhar
Da face triste andeja por andar
O vento que fustiga rosto triste
Maltratando, no castigo insiste,
Uivando entre prédios gelados
Algoz feroz de açoites soprados

Misturado ao mundo caminha
No novelo da moira como sina
Andar trôpego pelo abandono
Se... desperto, parece ter sono
E soma-se a casacos, sapatos,
Faróis de automóveis ingratos,
Guarda-chuvas, tosses, passos
Inseguros vão, descompassos

Outros passam rápidos, a esmo
Seguem fugindo de si mesmos 
Necessidade de debandar sempre
A lugar algum; fuga permanente...
Gente que se esbarra, apinhada,
Teimosa caminhada para o nada
Em prognóstico de mau agouro,
Rebanho tangido ao matadouro.

Tantas cabeças, pernas e braços
Onde poderia deitar seu cansaço?
Na multidão não vê ombro amigo
Peito quente que fosse um abrigo
Mão que no seu braço pousasse
Como bússola o norte apontasse
Entregar-se-ia em suspiro profundo
Com forças para vencer o mundo.

As luzes de néon multicoloridas...
Raios de mil cores tremeluzidas... 
Asfalto molhado reflete lucilando
Espelhando o mundo vai brotando,
De cabeça para baixo, mais gente...
Mais urbanos zumbis indiferentes
E não vê ombro amigo ou abraço
Onde pudesse deitar seu cansaço

Olhares nos olhares sem desvios
Olhando nos olhos sem desafios...
Passos fossem os mesmos passos
Sem oco, sem eco, aí seriam laços
Para seguirem juntos aonde fosse
Ó buscado par de entrega e posse...
Mas urdidor desfeito na multidão, 
Vai-se agregado à mesma solidão.

Gente, vozes, alaridos e clamores
As ladainhas da massa de odores, 
Ironia da vida em sociedade urbana
Igrejas, buzinas, crenças profanas
Onde sobejam companhias alugadas
Para trocas de conversas amargas
E da feiúra de fato por falsa beleza
Pernas roçadas por baixo das mesas

Taças embaçadas de dores igualadas
Na fuga da bebida tomada às goladas
Ao som de música viciada e asfixiada
Pela amarelenta fumaça assoprada...
Engolida, sussurrada e também cuspida
Dos cigarros que levam nacos de vida
Trocados por fatias breves de atenção
O que importa? Mesmo sendo ilusão?

Nascido humano. Vivente desumano
Tal como teatro, quando desce o pano
Cada qual com sua verdade ou mentira,
Tanto faz, o que importa é cingir a lira.
Solidão implacável o corpo frangalha
Andou pela vida buscando a migalha
Que sentisse: o abandono, frio e fome... 
Um ser querido e soubesse seu nome...